VOZES QUE COSTURAM SILÊNCIOS: A DRAMATURGIA DA MARGEM EM ORATÓRIO NO DESERTO DE SAL

Dramaturgia da Resistência: A Literatura como Testemunho em Rudinei Borges

RESUMO

O presente ensaio propõe uma análise crítica da obra Oratório no deserto de sal, de Rudinei Borges, reunindo peças dramatúrgicas que transcendem as convenções do teatro tradicional e instauram uma linguagem híbrida entre o lírico, o épico e o trágico. Com forte ancoragem na realidade social brasileira, especialmente na experiência da pobreza, da exclusão e da resistência, a escrita de Borges elabora um teatro da memória e do testemunho, fundado na potência da palavra poética e na centralidade de vozes silenciadas. O ensaio discute o caráter transgressor da dramaturgia de Borges, que rompe com os parâmetros clássicos da cena teatral ao integrar elementos bíblicos, mitológicos, históricos e cotidianos na tessitura de sua narrativa. Amparado por reflexões teóricas de Antonio Candido (2004), Giorgio Agamben (2008), Martin Esslin (1961), entre outros, o texto evidencia como a obra de Borges se afirma como um oratório moderno, no qual a palavra poética emerge como instrumento de denúncia, cura e redenção. Além disso, a figura da mãe e do filho — constantes no livro — se destacam como símbolos de luta e transmissão de saberes, compondo uma estética da resistência enraizada nas camadas populares do Brasil. Por fim, o ensaio propõe que Oratório no deserto de sal é mais que uma coletânea de peças: é um corpo orgânico de vozes insurgentes que, ao se fazerem ouvir, reivindicam o direito à existência por meio da arte.

Palavras-chave: Dramaturgia brasileira; pobreza; resistência; teatro do testemunho; Rudinei Borges.

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INTRODUÇÃO

A dramaturgia contemporânea brasileira tem presenciado, nas últimas décadas, um movimento de reconfiguração estética e política que desafia os modelos tradicionais do teatro e propõe novas formas de representação da realidade. Inserida nesse contexto, a obra Oratório no deserto de sal, de Rudinei Borges, reúne textos dramatúrgicos compostos entre 2010 e 2021 que extrapolam os limites convencionais do drama ao adentrar o terreno da poesia, da memória e do testemunho. Com uma escrita marcada por vozeios arcaicos, fragmentos de narrativas e silêncios significativos, Borges inscreve na cena teatral um Brasil profundo — ancestral, ferido, mas não vencido — e constrói uma dramaturgia em que os personagens, majoritariamente oriundos das camadas marginalizadas da sociedade, assumem o papel de protagonistas de suas próprias histórias.

Este ensaio tem como objetivo central analisar os principais aspectos da construção estética e temática dessa obra, com especial atenção ao modo como ela articula literatura e política por meio de uma linguagem dramatúrgica inovadora. A peça Arrimo, em particular, emerge como ponto de partida para refletirmos sobre a figura da mãe como símbolo da resistência e da pedagogia da sobrevivência. Em diálogo com autores como Antonio Candido, que defende o direito à literatura como direito humano fundamental, e Giorgio Agamben, que discute a ruptura da palavra literária com o tempo mágico da linguagem, argumentamos que Oratório no deserto de sal não é apenas um conjunto de peças, mas sim um verdadeiro “teatro do sagrado cotidiano”, onde os corpos e as palavras dos oprimidos se tornam escritura e sacrário.

Assim, ao longo do ensaio, buscaremos demonstrar como Rudinei Borges reconstrói uma dramaturgia da escuta, na qual a denúncia das violências estruturais e a afirmação da vida se entrelaçam em um oratório polifônico de sal, suor, lágrima e palavra. A singularidade de sua linguagem, o uso de rubricas poéticas e o hibridismo formal apontam para uma proposta de cena em que a estética e a ética se encontram no gesto radical de dar voz aos silenciados da história.

A POÉTICA DA ORALIDADE E O TESTEMUNHO DA POBREZA

A poética da oralidade em Oratório no deserto de sal é um dos elementos estruturantes da dramaturgia de Rudinei Borges. Sua escrita dramatúrgica encontra raízes no sertão nordestino, na oralidade amazônica e na memória coletiva dos marginalizados, compondo um cenário estético marcado por “vozeiros arcaicos” e por uma linguagem tensionada entre o lírico e o épico. Os personagens de Borges — como Macabéa, Auarã, Misael ou o narrador-filho de Arrimo — não apenas representam o povo oprimido, mas falam como povo, com um idioma que emana da experiência direta do sofrimento, da luta e da esperança. Segundo Antonio Candido (2004, p. 177), “a literatura humaniza ao representar a complexidade do humano e ao nos abrir ao outro”, e essa abertura está presente de forma radical nas falas daqueles que, mesmo subjugados, persistem na criação de sentido por meio da palavra. Essa oralidade dramatúrgica não é naturalizada: ela é lapidada como resistência simbólica, elevando o cotidiano da pobreza à categoria de linguagem estética e política.

TRANSGRESSÃO DRAMATÚRGICA E O TEATRO DA PALAVRA

A transgressão das formas dramatúrgicas tradicionais se revela, em Borges, como uma recusa deliberada às estruturas clássicas do teatro ocidental. O autor rompe com os parâmetros do drama aristotélico — unidade de tempo, espaço e ação — e inscreve sua dramaturgia numa zona de intersecção entre o teatro da alma de Maeterlinck e o teatro do absurdo de Beckett. Como observa Martin Esslin (1961), o teatro do absurdo “reflete o abandono das certezas racionais e mostra a fragmentação do mundo moderno por meio da forma teatral”. Em Borges, essa fragmentação está presente tanto no conteúdo quanto na forma: a narrativa em espiral, os monólogos que se confundem com preces, os inventários delirantes de palavras e os silêncios prolongados instauram uma poética da ruína. Suas rubricas, em vez de servirem à função cênica convencional, adquirem valor literário e poético autônomo. Em Epístola.40: carta (des)armada aos atiradores, por exemplo, a rubrica “Diz-se agora, em alembramento…” abre espaço para um delírio lírico que dissolve as fronteiras entre encenação e leitura, entre gesto e palavra.

A FIGURA DA MÃE COMO EIXO SIMBÓLICO E POLÍTICO

A figura da mãe, presente de forma recorrente nas peças, especialmente em Arrimo, adquire densidade simbólica e política que ultraa o papel tradicional do feminino no drama. A mãe é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do discurso: é aquela que sustenta, que educa, que reza, que sofre — mas também é aquela que se torna o oratório vivo onde a fé e a linguagem se entrelaçam. A mãe de Arrimo surge como espectro de um Brasil invisível, aquela que “levou a vida inteira limpando o chão onde os outros pisavam para sustentar os filhos” e, ao mesmo tempo, alfabetizou o filho com cadernos de vogais e consoantes enquanto ainda aprendia a escrever. A centralidade dessa figura remete à noção de “mães fundadoras da palavra”, discutida por Hélène Cixous (1995), para quem “a mulher é a origem do discurso, pois é nela que a linguagem se forma como carne”. Em Borges, essa carne é a carne do trabalho, da resistência, da reza e da costura — e a costura, aliás, torna-se metáfora de escrita: a agulha fere o tecido assim como a palavra atravessa o corpo social ferido.

O LUGAR DA INFÂNCIA E DA REDENÇÃO;

A infância em Oratório no deserto de sal não é um tempo idílico, tampouco um espaço protegido; ela se apresenta como um campo de resistência precoce, onde o aprendizado da dor e da linguagem se entrelaçam. Em Arrimo, o narrador relembra os dias de menino com um misto de ternura e brutalidade, rememorando o tempo em que a mãe lhe ensinava a escrever “com letra grande” enquanto lavava roupas alheias. Essa cena, de forte valor simbólico, representa o embate entre a precariedade das condições materiais e a grandeza do gesto educativo, que se repete em tantas famílias brasileiras marginalizadas. A infância, nesse contexto, é uma iniciação forçada à dureza da vida, mas também à consciência crítica. Como afirma Paulo Freire (1987, p. 45), “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si mediatizados pelo mundo”. Em Borges, a educação da infância é mediada pela pobreza, pelo trabalho infantil, pela religiosidade popular e pela palavra que tenta organizar o caos. A criança que assiste à luta da mãe torna-se herdeira de um saber doloroso, mas vital: o da dignidade frente ao desamparo.

A SACRALIDADE DA LINGUAGEM E O PAPEL DA LITERATURA.

A sacralidade da linguagem em Borges não reside na forma ou na retórica, mas na função que a palavra adquire como força de convocação e sobrevivência. A palavra, em sua carga mítica, assume a função de orar e narrar ao mesmo tempo — por isso o termo “oratório” é tão decisivo no título da obra. Trata-se de um teatro que não apenas denuncia, mas consagra. O “deserto de sal” é um espaço simbólico de aridez existencial, mas também de purificação e revelação. A linguagem dramática se transforma, assim, em ritual de agem, em voz de quem foi esquecido pelos discursos oficiais. Giorgio Agamben (2008, p. 42) nos ajuda a pensar essa dimensão ao afirmar que “a literatura é o lugar onde a linguagem abandona sua função de comunicação e adquire uma existência autônoma”. Em Oratório no deserto de sal, essa autonomia é marcada pela fratura e pela beleza, pelo lirismo do precário e pelo gesto performático de fé e denúncia. A cena teatral se converte, enfim, em altar de memória — e, como tal, convoca o espectador/leitor a escutar o invisível.

CONCLUSÃO

Oratório no deserto de sal, de Rudinei Borges, revela-se como uma obra dramatúrgica que transcende os limites do teatro convencional para se constituir como um verdadeiro rito de escuta e palavra. Através da oralidade poética, da fragmentação formal e da elevação estética das vozes marginalizadas, Borges constrói um oratório contemporâneo onde a fé, a memória e a resistência se encontram. Sua dramaturgia se ancora em uma linguagem que não apenas comunica, mas consagra: a palavra dramatúrgica se faz oração, denúncia e redenção. O espaço cênico torna-se um deserto simbólico de sal — elemento de purificação, mas também de dor — no qual os personagens enfrentam a aridez do mundo e reconfiguram o silêncio em discurso.

A análise desenvolvida neste ensaio evidencia a força com que a obra opera sobre temas como a infância, a maternidade, a exclusão social e a sacralidade da linguagem. Ao trazer para o centro da cena os sujeitos invisibilizados pela história e pela cultura dominante, Rudinei Borges reconfigura os fundamentos da dramaturgia brasileira contemporânea. Sua escrita dramatúrgica não busca apenas representar o real, mas recriá-lo com dignidade estética, política e ética. Assim, a obra não apenas merece ser lida e encenada, mas também estudada como exemplo de como a literatura pode ser, simultaneamente, instrumento de denúncia e altar de resistência.

Como desdobramento possível, este estudo aponta para investigações futuras que abordem a intertextualidade bíblica na obra, os traços da religiosidade popular, ou ainda a presença de um “teatro da memória” como categoria autônoma. Em tempos de obscurantismo político e exclusão cultural, Oratório no deserto de sal nos recorda que o palco é, ainda, um lugar possível de reexistência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ______. Vários Escritos. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2004. p. 167-183.

CIXOUS, Hélène. O riso da Medusa. Trad. Claudia Schilling. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Tendências e Imes: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 143-157.

ESSLIN, Martin. The Theatre of the Absurd. New York: Anchor Books, 1961.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

BORGES, Rudinei. Oratório no deserto de sal. Curitiba: Kotter Editorial, 2022.

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